Cultura

Eis o Homem

Marco Aurélio Campos

 

bandeiraRSBrotei do ventre da Pampa,
que é Pátria na minha Terra.
Sou resumo de uma guerra
que ainda tem importância.

Diante de tal circunstância,
segui os clarins farroupilhas
e, devorando coxilhas,
me transformei em distância.
Sou tipo que, numa estrada,
só existe quando está só.
Sou muito de barro e pó.
Sou tapera, fui morada.

Sou velha cruz falquejada
num cerne de coronilha.
Sou raiz, sol farroupilha,
renascendo estas manhãs.
Sou o grito dos tahãs
voejando sobre a coxilha.

Caminho como quem anda
na direção de si mesmo.
E, de tanto andar a esmo,
fui de uma a outra banda;
Se a inspiração me comanda,
da trilha logo me afasto
e até sementes de pasto
replanto pelas vermelhas
estradas velhas, parelhas,
ao repisar no meu rastro.

Sou a alma longa e tão cheia
como os caminhos que voltam
quando as saudade rebrotam
substituíndo os espinhos
que, à perda de alguns carinhos
antigos, velhos aprontes,
nasceram muitos, aos montes,
desta minha vida aragana,
nesta andança veterana
de ir destampando horizontes.

Eu sou a briga de touros
no gineceu do rodeio.
Impropério em tombo feio
quando um índio cai de estouro.
Sou o ruído que o couro faz
faz ao roçar no capim.
Sou tim-rrim-tim-tim
da espora em aço templado.
Trago o silêncio, guardado,
do pago dentro de mim.

Fazendo vez de oratório,
sou cacimba destampada,
de boca aberta, calada,
como à espera do ofertório;
como vigília em velório,
nesse jeito que é tão seu:
tem muito de terra… É céu
que a gente sente ajoelhando
e, de mãos postas, levantando
o pago inteiro para Deus.

Sou o sono do cusco amigo
meio dentro do borralho.
Sou as vozes do trabalho,
no amor, na paz – sou perigo.
Sou lápide de jazigo
perdida nalgum potreiro.
Sou manha de caborteiro,
sou voz rouca de acordeona
cantando, triste e chorona,
um canto chão brasileiro.

Sou a graxa da picanha
na bexiga enfumaçada.
Sou sebo de rinhonada
me garantindo a façanha.
Sou vozerios de campanha
que nos lançantes se somem.
Sou boi-ta-tá, lobisomem.
Sou a santa ignorância.
Sou o índio sem infância
que, sem querer, ficou homem.

Sou o Sepé Tiarajú,
o Uruguai, rio-mar azul.
Sou o cruzeiro do sul,
luz e guia do índio cru.
Sou galpão, charla, e chirú
de magalhanicas viagens.
Andejei por mil paisagens,
sem jamais sofrer sogaço.
Cresci juntando pedaços
de brasileiras coragens.

Sou, enfim, o sabiá que canta,
alegre embora sozinho.
Sou gemido de moinho
num tom tristonho que encanta.
Sou o pó que se levanta,
Sou terra, sangue, sou verso.
sou maior que a história grega.
Eu sou Gaúcho, e me chega
p’rá ser feliz no universo.

Categorias: Cultura, Gaúcha | Tags: , , , , , , , | Deixe um comentário

Estância

FonteLivro "Curso de tradicionalismo gaúcho", de Antonio Augusto Fagundes. Martins Livreiro Editor. 1995

Fonte
Livro “Curso de tradicionalismo gaúcho”, de Antonio Augusto Fagundes. Martins Livreiro Editor. 1995

“Estância” quer dizer “lugar de estar”, como as estâncias hidrominerais, tão populares, hoje. Mas é também o lugar onde se cria gado para vender, ou seja, trata-se de uma empresa comercial.

Foi o padre jesuíta quem criou a estância gaúcha. Preocupado com a crise de fome que assolava os Povos, em 1634 o Padre Cristóbal de Mendonza trouxe mil cabeças vacuns desde a Argentina, gado esse que foi distribuído em “estâncias” para o abastecimento dos Povos. Alguns ficavam distantes das Missões, como a de Santa Tecla, hoje no município de Bagé. Para cuidar das estâncias, os jesuítas treinaram a cavalo índios “vaqueros”, que logo iriam se somar aquele denso caldo humano do qual vai brotar o Gaúcho.

Expulsos os jesuítas, muito gado ficou por aqui e o branco – espanhol ou português – foi se adonando de tudo, organizando as suas próprias estâncias. E já registrando “marca” (que era enorme) e “sinal” (cortes específicos nas orelhas dos animais), como persiste até hoje.

Essas primeiras estâncias tinham como limites os meramente naturais – rios, montes, matos – mas cada um sabia o que era seu e até uma ninhada de tatus assinalados era respeitada escrupulosamente pelos vizinhos… Ademais, os jesuítas muitas vezes mandavam os índios escavar extensos valos, para delimitar áreas de campo, como os que existem ainda hoje na estância Guabijutujá, em Tupanciretã. Depois, com os escravos, vieram as cercas de pedra, existentes ainda hoje, que os serranos chamam de “taipa”. Na metade do século XIX aparece a cerca de arame, fazendo a divisa de potreiros, invernadas e postos.

A estância gaúcha tradicional se compõe das Casas, onde mora o proprietário com sua família, em cujos cômodos gente estranha não põe os pés, a não ser a criadagem “de dentro”. O galpão, ou galpões, é exclusividade da peonada, onde cada peão em o seu catre, tarimba ou cama (hoje em dia, beliche) e aonde sempre arde um fogo-de-chão para a roda do mate ou algum churrasquito meio galopeado, quem sabe até de charque. O galpão é um reduto masculino. Mulheres que nasceram e se criaram nas Casas da estância morrem de velhas sem conhecer o interior do galpão…

A Casa do Capataz é onde este vive com a família, a meio termo entre as Casas da estância e os galpões. As mangueiras, que podem ser de pedra, de arame, de tábua ou de varejão (troncos) e que incluem a mangueira grande, o curro (ou seringa), o tronco e os bretes, são os currais para encerrar o gado em determinados trabalhos. E, quase sempre, o banheiro, que é grande para o gado (vacuns) e pequeno para o rebanho (ovinos), onde se banham os animais com remédios
contra a sarna, o carrapato, etc…

do galpão, o piquete, onde se soltam os animais de trabalho ou do “munício” (os que vão ser abatidos para o consumo da estância). Depois, as invernadas, quase todas com nome: Invernada da Tapera, do Coqueiro, do Cerro, doValo. Nessas invernadas se cuida do gado e numa delas está o parador do rodeio, ponto de reunião da animalada para trabalhos especiais, como aparte e coisas assim.

Longe das Casas, os postos, que só existem nas estâncias grandes. São o que o nome diz, cuidados por um Posteiro, que mora num rancho com a família. Junto aos matos, ou rio, vive algum Agregado, gente amiga do proprietário que obteve licença para erguer um rancho nos campos deste e tem alguma vaquinha de leite, uma hortinha, galinhas e porcos.

Hortas e lavouras não são comuns, ou fartas, na estância. O gaúcho sempre foi um comedor de carne. Planta, quando muito, alguma batata-doce, milho, abóbora e melancia. E só.

O pessoal da estância é o Patrão (e sua família), a gente das Casas (a criadagem, inclusive a cozinheira), o Capataz (e sua família), a peonada, os posteiros e agregados. De primeiro havia também o Maiodormo (administrador) e o Sota-Capataz (logo abaixo do capataz na hierarquia campeira).

Há trabalhadores especializados que a estância tem ou não. Muitas vezes suas tarefas são deferidas à peonada. São eles: carreteiro, domador, alambrador, tropeiro, peão caseiro ou peão patieiro, poceiro, compositor, carroceiro, lavoureiro, chacareiro, guasqueiro ou trançador. Quando não há alguém habilitado para esses trabalhos, na estância, chama-se alguém. O peão comum é o mensual e o contratado por jornada é o “peão por dia”.

Categorias: Cultura, Gaúcha, História | Tags: , , , | Deixe um comentário

Café de chaleira

FonteLivro "Mala de Garupa - Costumes Campeiros", de Raul Annes Gonçalves". Martins Livreiro Editor. 1999.

Fonte
Livro “Mala de Garupa – Costumes Campeiros”, de Raul Annes Gonçalves”. Martins Livreiro Editor. 1999.

Quatro gaúchos, desde a madrugada, troteavam estrada afora com um lote de cavalos por diante. Às nove horas acamparam junto a uma sanga, onde havia algumas árvores, para tomarem café e mudarem de cavalo.

 

Improvisaram uma forma contra um aramado e pegaram os cavalos para muda. Fizeram fogo e puseram as chicolateiras com água para esquentar. Depois, desencilharam os montados, tirando das malas de garupa o café, as bolachas e o açúcar.

 

Naquele tempo o café era composto, isto é, com açúcar dava uma tintura preta com um forte e agradável cheiro. Em geral, os tropeiros costumavam dividir as obrigações do fogão entre si. A um tocava fazer café, outro era o assador de carne; a um terceiro cabia fazer e encher o mate, a outro, a responsabilidade de juntar lenha; desta maneira tornava-se fácil e até mesmo divertido o trabalho.

 

O encarregado de fazer café naquela manhã, assim que ferveu uma das chicolateiras, a retirou do fogo e despejou dentro dela duas colheres de café em pó. Mexeu-o bem com a ponta da faca até dissolver todo; depois tornou a pôr a chicolateira no fogo. Quando levantou nova fervura, deixou que transbordasse um pouco do líquido pela beira da vasilha. Em seguida, retirou-a do fogo e meteu um tição aceso dentro do café, que provocou nova ebulição. Ali o manteve por segundos.

 

Isso feito, com as costas da faca, deu algumas pancadinhas por fora, na chicolateira. Estava pronto o café. Quando não há tição, por exemplo, em fogo de gravetos, ou em zona que existe lenha e o fogo é feito com corunilha, isto é, esterco seco de gado, nestes casos, pondo água fria na fervura do café, ajuda a sentar a borra.

 

Feito o café em chicolateiras ou cambonas, ficava à disposição dos tropeiros. Estes serviam-se despejando o café em seus canecos alouçados ou guampas onde botavam açúcar a seu contento.

 

Depois de servidos, com uma bolacha na mão e o copo de café na outra, sentavam nos arreios ou nos pelegos dobrados, às vezes colocados em cima de uma caveira de vaca, já limpa pelo tempo, ou de alguma pedra, fazendo às vezes de banco. Alguns preferiam ficar acocorados nos “garrões”, como é hábito entre nosso homem do campo, e, assim acomodados, tomavam tranqüilamente, o café da manhã.

 

Finda esta ligeira refeição, lavavam os copos e guardavam na mala de garupa o açúcar, bolacha e o café em pó. A sobra do café nas cambonas era posto fora e as vasilhas bem lavadas na sanga. Estas mesmas chicolateiras ou cambonas serviam para, ao meio-dia, aquentar a água para o amargo, como também para preparar a salmoura para o assado. Levantando o acampamento, os tropeiros seguiam a trote chasqueiro, estrada afora, pitando um crioulo.

 

Os gaúchos viajavam dias, fazendo 10 a 15 léguas diárias sem se aborrecerem. Nem se davam conta do tempo perdido nestas jornadas. Para eles a questão do tempo era indiferente; depois de um dia vinha outro; o importante, sim, era o serviço que estavam incumbidos de fazer.

Categorias: Cultura, Gaúcha, História | Tags: , , | Deixe um comentário

Tropa

FonteLivro "Trabalhos e costumes dos gaúchos", de Severino de Sá Brito. União de Seguros Gerais. 1979.

Fonte
Livro “Trabalhos e costumes dos gaúchos”, de Severino de Sá Brito. União de Seguros Gerais. 1979.

As tropas seguiam para Pelotas, onde existiam as grandes charqueadas em grande número, cerca de quarenta; havia também algumas sobre o rio Jacuí.

Naquela cidade os produtos bovinos tinham mais facilidade de sair barra a fora em iates, por isso ela tornou-se o empório da indústria do charque, como já era o entreposto comercial do sul da Província.

Todas as tropas que se encaminhavam para lá iam diretamente para a Tablada, um descampado, espécie de mercado onde os charqueadores faziam suas compras. Vindos de distâncias longínquas, com 20 a 30 dias de viagem, conforme as zonas, elas se compunham de 600 a 1.000 bois; assim numerosos tinham a vantagem de diminuir as despesas por cabeça.

Para uma viagem tão longa se tornava necessário ser muito gorda a tropa; o aparte era livre e o tropeiro tirava bois de calção, ou próximo a isso.
Só alcançavam essa gordura excessiva animais de cinco anos acima.

Conhecidos esses pontos essenciais, vamos ver como se fazia uma tropa, depois acompanharemos sua marcha até a antiga Charcópolis, hoje Princesa do Sul e capital da sociabilidade rio-grandense, nos seus característicos atributos.

Era um serviço trabalhoso fazer uma tropa naquele tempo em que não havia invernadas e os gados não tinham grande costeio e muitos ainda se conservavam semi-selvagens.

Para retirar a novilhada gorda daqueles campos, tornava-se necessário parar todos os rodeios e isso demandava alguns dias de serviço ativo.

A boiada apartada no primeiro dia dormia na mangueira e no dia seguinte ficava em pastoreio, enquanto se paravam outros rodeios, cujos bois vinham para serem incorporados ao núcleo já formado.

No último rodeio tirava-se também mais de meia dúzia de munícios, novilhas gordas de dois anos que serviam para a peonada churrasquear na viagem; cada dois dias matavam uma. Vinha para a encerra a tropa feita desses animais bisonhos, assustadiços, alvorotados. Fechados naquele ambiente sem o horizonte habitual, ficavam aterrados.

A menor coisa assustava-os muito, à noite um cachorro que de repente pulava na cerca, um berro de um boi corneado por outro, ou a tosse de um outro, era bastante para a novilhada dar um arranco dentro da encerra.

Alta noite se ouvia aquele rumor do gado correndo na mangueira, era um arranco sem motivo às vezes. No outro dia pela manhã, ao sair da encerra, a novilhada estava delgada, brava e arisca, ao passar a porteira saía ligeiro, priscando com movimentos rápidos.

Era preciso domá-la, isto é, metê-la em volta.

Antes de começar a caminhar já se achavam na sua frente os melhores campeiros, pois o lugar de ponteiro é o de mais responsabilidade na marcha da tropa. Alguns campeiros procura vam amansá-la com um assobio monótono ao andar e com “venha, venha”.

Ao principiar a caminhar, ela troteava, o capataz que já esperava por isso quebrava a ponta da direita para a esquerda, rebolando o relho obrigava todo o gado a redemoinhar; se ao seguir troteava novamente e se o lugar se prestava, dava outra volta na ponta fazendo girar ainda e com um assobio particular aquele bicharedo andava rápido nesse corrupio. Os que ficavam no centro eram tão apertados que levantavam muito a cabeça e então os chifres se batiam uns contra os outros com um rumor surdo.

Era um espetáculo bonito e chocante ver essas feras com suas armas alevantadas como se digladiassem em torneio louco.

Os da beirada troteavam acompanhando o movimento, nesse exercício precursor do domínio, a peonada abria os cavalos e deixava-os à vontade. Então, pouco a pouco, iam se alargando e sossegando. Se ao marchar troteavam outra vez, metiam em volta novamente e recomeçava a mesma cena.

Depois de repetidas vezes fazerem isso ao som de assobio adequado, os animais por si mesmo redemoinhavam.

A tropa braba com essas manobras aprendia a obedecer e ia se entregando, se amansando.

Habituados àquele movimento com o assobio, ela estando na mangueira bastava assobiar para ela entrar em giro e assim diminuía o arranco.

Para fazer-se uma idéia do que era um gado selvagem, cito um fato.
Foi posto na encerra um gado do mato; na véspera de uma enxurrada d’água, juntou muito lodo do lado de baixo, a ponto de entupir os buracos de ladrões, ficando um atoleiro mole.

No outro dia, existiam muitos animais mortos em cima do barro, outros quebrados e agonizantes. Tal foi o terror desses selvagens que, assustados, atiraram-se por cima dos outros e fizeram essa hecatombe.

Uma tropa braba nas condições descritas era natural que nos primeiros dias de marcha para Pelotas fizesse disparadas.

Bois criados à lei da natureza, de repente reunidos, ficavam bisonhos, assustadiços.

A noite, numa ronda, ou mesmo de dia debaixo de uma chuvarada, um trovão repentino, um relâmpago inesperado, o aparecimento rápido de um cachorro, o latido, ou por qualquer outro motivo se dava o estouro da boiada, como dizem no Norte.

O arranco de uma tropa de dia, em campo aberto, tornava-se relativamente fácil dominar se dois ou três campeiros bem destorcidos e bem montados corriam na dianteira para sujeitar a ponta. Mas se a disparada da tropa se dava durante uma noite escura, era difícil agir de modo útil na ocasião. Nestas condições se um cavaleiro rodava na ponta da tropa, só tinha um recurso para salvar-se, era dar tiros para o ar a fim de evitar que essa avalanche o pisoteasse passando por cima.

A conseqüência disso era a demora de dois ou mais dias para procurar ou recrutar o que faltasse na contagem; quase sempre havia prejuízos.

Passar a noite rondando um gado bravio, pronto a dar uma arrancada por qualquer motivo era um pedaço bem aborrecido e fatigante na condução de uma tropa, mas os homens afeitos àquele serviço rude não estranhavam; podiam passar a noite caminhando ou troteando ao redor dela quando estava desinquieta ou arisca.

Escolhido o lugar para a ronda, deixava-se o gado serenar e pastar à vontade.

Se a tropa era mansa e o terreno enxuto, pouco a pouco os novilhas iam se deitando e tudo corria bem; era uma noite bem passada. Mas se era braba, mal domada e ainda arisca, nos primeiros dias os cuidados se dobravam.

Ao entrar do sol, enquanto ela pastava sossegada, os peães iam se substituindo ao redor do fogão para comer e tomar mate, até que escurecia, então dividiam-se em dois grupos, um que fazia o quarto até meia noite e o outro turno cuidava dessa hora em diante.

Quem ia repousar maneava o cavalo, tirava os pelegos para uma cama ligeira, arrumava um travesseiro de fortuna, um pau, um tição, uma pedra, coberto com pelego e, com o cavalo pela rédea, dormia um sono bom, até que chegasse a hora de ser chamado para fazer o seu quarto, tomar conta da ronda. Essa providência de ficar com o cavalo encilhado tornava-se necessária para um auxílio pronto no caso de um arranco da tropa.

Enquanto o fogo estava aceso, a disparada se dava ao rumo do fogão em noite escura, diziam.

Nos primeiros tempos [em] que se faziam as tropas, as pastagens eram abundantes e livres; se no caminho existia uma encerra, pedia-se emprestada por uma noite.

Deste modo as tropas conduzidas com cuidado e bom tempo chegavam ao seu destino sem mermar no peso e gordura. Nestes caminhos para Pelotas, depois de uns tempos para cá os pastos já eram pagos, isto mesmo nas zonas mais trilhadas e ainda de certo ponto em diante. Alguns moradores à beira da estrada construíam encerras apropriadas para tropas e que alugavam para uma noite, quase todas feitas de taipas, altas e bem seguras. O tropeiro fazendo seu gado passar ali as horas de repouso, dava aos seus peães uma noite de descanso. Ao lado da porteira faziam o fogão, onde os pedaços sangrentos de um munício recém carneado tornavam-se apetitosos e gordos churrascos; depois do chimarrão e da palestra animada, vinha o sono reparador.

Se as circunstâncias tornavam-se favoráveis, podia aparecer algum vizinho morador para chalrear e se vinha uma viola, algum bardo gaúcha tomava-a e desferia suas cordas com cantares como os seguintes:

Triste vida a do tropeiro,
Que nem pode namorar,
De dia reponta o gado,
De noite toca a rondar.Tenho um cavalo escuro
De andar de madrugada;
Marcha, marcha, meu cavalo,
Vamos ver a namorada.

Eu vi Cupido montado
No seu cavalo picaço,
De bolas e tirador,
De faca, rebenque e laço.

Eu mandei fazer um laço
Do couro de jacutinga
Para laçar um boi barroso,
Lá no passo da restinga.

Zomba o fado em ser cruel
Contra a minha triste sorte;
As penas que me acompanham
Terão fim só com a morte.

Quando eu era pequenino
Cantava que retinia…
Eu cantava em Caçapava
No Oriente se ouvia.

Dos filhos que meu pai teve,
Eu fui o mais destemido;
Para amar moça bonita
Eu fui o mais presumido.

Entre trevo nasce trevo,
Entre trevo nasce flor;
Sem ser trevo, eu me atrevo
A tomar contigo amor.

Quebrar ferro, romper bronze
Não acho valentia;
Valente é meu coração
Em sofrer tua tirania.

Se eu pudesse em teus braços
Libertar esta paixão…
Só assim sossegaria
O meu ardente coração.

Depois de um peito querer
E de um coração se agradar,
Não há mais poder no mundo
Que faça um bem se apartar.

Menina case comigo
Que trabalhador eu sou;
Com sol não vou à roça
Com chuva também não vou.

Eu vi meu bem por acaso,
Eu vi meu bem no jardim,
Com mangas arregaçadas
Seus braços cor de carmim.

Eu vi meu bem, não me engano
Que vi meu bem na janela,
Com mangas arregaçadas
Seus braços cor de canela.

Eu vi meu bem cozinhando,
Eu vi meu bem no fogão,
Com mangas arregaçadas
Seus braços cor de carvão.

Não há rosa na roseira,
Que não dê o seu botão,
Não há negra, na cozinha
Que não dê sua razão.

Estes e outros de espírito namorado, romântico, irônico, humorístico etc. pertencem à poesia popular rio-grandense.

De madrugada ligeira refeição e novos mates, depois aprontações, acomodar os fiambres, a chocolateira e os avios do chiinarrão, para recomeçar a marcha.

A novilhada, ao sair à porteira, às vezes era contada de novo para verificar se o número estava certo. Quando acontecia serem duas tropas candidatas à mesma encerra, naturalmente cabia de direito ao primeiro que chegava, a fala.

O dono algumas vezes apreciava a carreira entre dois tropeiros que pretendiam a mesma comodidade para seu gado.

De uma feita, um, em vez de correr, parou o cavalo e deu um tiro para o ar. Ao seu competidor foi respondido que a pólvora tinha falado primeiro.

Espírito de gaúcho.

A um tropeiro e à sua gente podiam acontecer coisas bem desagradáveis; eram as chuvaradas intermináveis. Uma tropa que se fazia ou terminava com tempo arruinado, dava motivo a aborrecimentos. Podia ser o começo de uma temporada de chuva que acompanharia a sua marcha até Pelotas com garoas contínuas ou chuvisqueiros repetidos.

Embora fosse verão, ou mesmo começo do outono e eles habituados às intempéries, tornava-se deveras enfastiante para os pobres peães de tropa.

Nessas condições, como fazer fogo para churrasquear? Como dormir? Arreios molhados, ponchos que não enxugavam, roupas úmidas. Se a noite era de ronda, alguns tinham de esperar seu quarto de serviço, dormindo sentados nos pelegos com os cavalos pelas rédeas.

Por sorte, com os aguaceiros repetidos, o gado também ficava abichornado e sossegado virando as costas para o lado da chuva e do vento.

Contavam os peães de tropa que no fim da jornada as roupas estavam imprestáveis, os xergões inutilizados e a cavalhada, composta de 3 a 4 cavalos de cada peão, ficava estranzilhada.

Porém o maior infortúnio era do tropeiro que via decair o seu gado e a sua tropa desvalorizar-se.

As temporadas de secas também davam motivos para ficarem aborrecidos, com as marchas forçadas a que eram obrigados para alcançar aguadas e pastagens convenientes. Os animais da tropa ficam desinquietos e nada os embrabece tanto como a sede. A maior seca na segunda metade do século passado foi a de 1875.

Durante a sua fase aguda apareceu na estância um tropeiro que precisava levar uma tropa para Pelotas. Diante da situação penosa que corria, tornava-se impossível parar rodeio para um serviço regular de apartes.

O recurso foi o das volteadas para pegar novilhos gordos. Daí muitos incidentes.

Um rapaz novato laça um boi nas proximidades da sanga da Guajuvira, o cavalo roda, o boi dá o tirão e volta enfurecido contra ele, mete a aspa no sangradouro e mata-o.

Resultado: um cadáver fica segurando firme um novilho bravio.

O mocito, com o susto, já tinha desaparecido, correndo sanga abaixo. Os campeiros o atenderam.

A mesma sanga, aliás bem forte, com ligações, estava logo abaixo reduzida a pequenos poços, onde todos os animais dos campos vinham desalterar-se da implacável sede; o veado e o sor ro aí deixavam suas catingas, o avestruz e o quero-quero algumas penas. Passava muito do meio-dia quando a tropa já crescida entrou nos maiores poços e demorou-se a beber e a pisotear. Nesse momento de um pequeno descanso, todos sequiosos procuravam desalterar-se; alguns seguiam pela sanga abaixo à cata de melhores poços.

Puro engano.

Um pouco de fiambre oferecido de um farnel tornou-me mais imperiosa a necessidade de beber o precioso líquido, mas só havia água pisoteada, barrenta e preta, porém… a sede estava mais preta!…

Que fazer?

Era uma ilusão tomar essa água através um lenço limpo, mesmo mastigando a carne para não sentir-lhe o gosto.

Parece que naquele tempo os raios ultravioleta do sol cumpriam bem a sua missão, ninguém adoeceu.

Mas voltemos ao assunto para lembrar que, hoje, fazer uma tropa torna-se muito simples: reunir na invernada a boiada já costeada, apartar o que está gordo; contar, faturar e receber o cheque é um trabalho de poucas horas.

Se ela foi vendida a peso, o dono vai ou manda assistir à pesada na charqueada e lá recebe o cheque.

Além disso, os apartes são mais favoráveis, não é preciso que um boi esteja bem gordo, tendo passado pela fase da carne branca há mais de mês, já serve; entretanto levam sempre a flor do gado.

Os estabelecimentos que beneficiam os produtos da indústria pastoril, saladeiros e frigoríficos, vieram colocar-se perto da matéria-prima e assim em poucos dias uma tropa lá está inteira em peso e gordura, no outro dia é a matança.

Raramente os gados para esses estabelecimentos são conduzidos em trem especial, pois o pesado frete encarece muito seu valor.

Quantas vantagens sobre o que se fazia! …

Outrora lidava-se com bois bravios, sujeitos a disparadas e a prejuízos com viagens de 20 a 30 dias, conforme a procedência, despesas maiores, muitas vezes estropiavam-se na estrada áspera como grosa, da Serra das Asperezas; chegavam a Pelotas entranzilhadas e com grande quebra no peso e na gordura, mesmo desfalcadas de alguns, pois eram obrigados a deixar ou a vender no caminho reses que não podiam andar de tão estropiadas.

Também existiam dificuldades quanto ao transporte de dinheiros. O tropeiro que vinha a uma estância atrás de gado carregava um cinto forte de couro curtido de capivara ou veado, uma espécie de bolsa tubular, cheia de onças de ouro, regulava cada uma 32.000 réis; para verificação do peso deles havia umas balanças diminutas que dobradas carregavam no bolso.

Do câmbio não se cogitava, quase sempre andava no par. Em geral era um camarada de confiança que apresilhava na cintura, semelhante cinto pesado que castigava as cadeiras. Quando a quantidade era demasiado grande acomodavam em saquinhos bem resistentes dentro de peçuelos pequenos, redondos, muito fortes, trazidos pelo peão ao lado do patrão.

Também existia o dinheiro em papel que era preferível às vezes ao ouro depreciado pelas subidas do câmbio acima do par; arrumavam em cinto largo com pequenos bolsos abotoados, a que chamavam guaiaca.

Categorias: Cultura, Gaúcha, História | Tags: , , , , | Deixe um comentário